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terça-feira, 10 de maio de 2011

O DIRIGISMO CONSTITUCIONAL SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS

       *Miguel Calmon Dantas, Procurador do Estado da Bahia e Advogado. Mestre e Doutorando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Assistente de Ciência Política e Direito Constitucional da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Direito Constitucional e de Direito Econômico da Universidade Salvador (Unifacs) e de Direito Constitucional da Faculdade Baiana de Direito.


1. INTRODUÇÃO
Há muito se discute a natureza da, em breve vintenária, Constituição brasileira de 1988, sobressaindo a sua dimensão dirigente a partir de normas programáticas cuja juridicidade e força vincultante deve ser reconhecida e garantia pela jurisdição constitucional.
A feição dirigente não provém apenas das normas programáticas, sendo uma nota típica e global de todo o texto constitucional pátrio, pois, em certo sentido, todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão programática, notadamente se concebidos normativamente como princípios, consubstanciando-se em mandados de otimização.
Além disso, e reabilitando o dirigismo diante da crise dos paradigmas da pós-modernidade, a Constituição brasileira, ao ser dirigente, abriga uma dimensão de resistência e uma dimensão projetiva. A resistência se endereça ao entrincheiramento e à preservação do Estado Social como elemento existencial do Estado Democrático de Direito, enquanto a projetiva viabiliza a sua potencialização através das cláusulas de utopia que, pela crítica do presente, iluminam a direção de um futuro ao assinalar objetivos e finalidades que passam a deter caráter vinculante.
Nesse contexto, constata-se que o direito constitucional, ao projetar as suas normas para além do presente, ao exprimir a auto-representação da coletividade que, enquanto comunidade, compartilha solidariamente objetivos que lhe conferem o próprio ligame social e irradiando-se substancialmente e substantivamente sobre a atividade político-decisória de modo a promover não apenas a constitucionalização do direito, mas a constitucionalização da própria política.
Em verdade, não se pode compreender adequadamente toda a potencialidade emancipatória, libertária e garantista do dirigismo constitucional brasileiro se, numa impostergável perspectiva transdisciplinar, reconhecedora da complexidade da questão, não se atentar para a inflexão operada sobre a política e, especificamente, sobre as políticas públicas.
As normas programáticas e os deveres que resultam dos direitos fundamentais acabam repercutindo não apenas na existência e no reconhecimento de direitos subjetivos, judicialmente exigíveis, mas também sobre as etapas componentes da estruturação das políticas públicas, interdizendo ao Poder Público a eleição de prioridades que colidam com as dos programas constitucionais, como a implementação de medidas que sejam ineficientes ou inadequadas e, ainda, a inércia no desenvolvimento e execução das mesmas.
E a constitucionalização das políticas públicas traz consigo, como não poderia deixar de ser, a jurisdição constitucional, firme no mister de fazer com que se leve direção constitucional das políticas públicas a sério, sem que deva se converter num governo de juízes.
Dessa forma, o dirigismo constitucional importa na constitucionalização da política, entendida como instância de decisão sobre a direção e os objetivos da associação política, ou, num sentido mais clássico e filosófico, a arte de governar. Se as políticas públicas passam a estar juridicizadas e dirigidas programaticamente pelo texto constitucional, habilita-se, também, o controle pela jurisdição constitucional.
Se os programas constitucionais não são atendidos, invariavelmente essa defasagem decorre por ausência de vontade política, por eleição de prioridades de governo sobre as prioridades constitucionais, por ineficácia da ação estatal, mal planejada, ou por se deparar com a reserva orçamentária ou com a reserva do possível. Em todas essas hipóteses, salvo a reserva orçamentária e a reserva do possível, que podem ser minimizadas, é impositivo o resguardo e a promoção da programaticidade constitucional sobre as políticas públicas, dirigindo a ação estatal para uma política que viabilize a construção de um futuro, fundada na razão prática mediante a reflexão hermenêutico-existencial.
O passado, o presente e o futuro de uma determinada comunidade política se exprimem nos textos constitucionais dirigentes, seja como memória, seja como crítica e resistência, seja como projeção, relacionando-se, especialmente nesse último âmbito, com as políticas públicas.
Por conseguinte, apontada a relação entre dirigismo e as políticas públicas, urge compreender que as políticas públicas exprimem um programa de ação estatal, resultando de um planejamento em que já deve haver a repercussão da programaticidade e dos objetivos constitucionais como dos direitos fundamentais, afirmando-se que a constitucionalização da política a reabilita enquanto instância decisória.
Essa repercussão se dá pela vinculação aos objetivos e finalidades dos programas constitucionais, mas também das imposições que resultam dos direitos fundamentais.
Objetiva-se, portanto, sustentar a pertinência do dirigismo constitucional brasileiro sobre as políticas públicas, vinculando, positivamente, o Poder Público na atividade de direção política e, conseqüentemente, possuindo uma dimensão transcendente para além do presente, para além da resistência, para além do mínimo vital, voltando-se para o máximo existencial pela realização ótima das utopias projetivas que residem no texto constitucional enquanto auto-representação da sociedade.

2. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DO POLÍTICO: O DIRIGISMO DA AÇÃO ESTATAL E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
A constitucionalização do político, numa Constituição brasileira dirigente, não se reduz apenas à estruturação de órgãos, fixação de competências e disciplina da forma de exercício e transferência do poder político.
A Constituição dirigente opera sobre a política de variegadas formas, tanto a partir dos objetivos fundamentais do art. 3°, como em virtude do sistema dos direitos fundamentais, cuja eficácia objetiva vincula os Poderes Públicos, impondo o dever fundamental de desenvolvê-los ao máximo possível diante da estrutura principiológica que possuem.
Os princípios e objetivos fundamentais, além dos próprios direitos fundamentais, caracterizam-se como mandados de otimização, devendo ser realizados na maior medida do que seja jurídica e faticamente possível.
A dimensão principiológica dos direitos fundamentais foi destacada com acuidade por Robert Alexy (2001, p. 86) em lição abaixo colacionada, in verbis:
El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan algo que sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas.
A caracterização dos princípios como mandados de otimização também é ressaltada por Canotilho (2002, p. 1239), abaixo transcrito, in verbis:
Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo ou nada’; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fáctica ou jurídica.
Logo, tanto os direitos fundamentais como os objetivos fundamentais apresentam uma eficácia prospectiva na medida em que devem ser realizados na maior medida do possível, pouco importando se um determinado dispositivo expressa ou não um caráter de imposição constitucional abstrata ou concreta1.
Seja pelo sistema de direitos fundamentais, seja pela adequação axiológica que confere unidade e ordem ao sistema constitucional a partir do relevo dos princípios e objetivos fundamentais, verifica-se a potencialização do caráter dirigente da Constituição Federal.
Entretanto, o dirigismo não pode ser confundido com a eficácia objetiva ou com a analiticidade da Constituição, aferindo-se a sua substância a partir da relação das imposições constitucionais, abstratas ou concretas, sobre o âmbito da realidade, na medida em que a justificação do dirigismo constitucional reside justamente na necessidade da disciplina constitucional de política econômica, objetivando a transformação da realidade que, no caso do Brasil, remete à problematização da ação estatal sobre as várias matizes que compõem a Questão Social, ainda persistente.
Canotilho (1994, p. 70-71) destaca exatamente esse traço do dirigismo constitucional ao referir que o seu principal traço consiste em deixar a realidade à evolução, ou à construção racionalmente orientada, de modo que “[...] a constituição tem sempre como tarefa a ‘realidade’.”
Assim, independentemente do caráter principiológico dos direitos fundamentais e da dimensão positiva que deles advém, o dirigismo se identifica pela relação de tais direitos com os objetivos na compostura da ação estatal voltada para a realidade, a fim de propiciar a existência efetiva das liberdades e dos direitos fundamentais.
E nem se arroste tal perspectiva pela defesa de um radicalismo democrático que sustente caber exclusivamente aos órgãos de representação popular a direção política, porque eleitos racional e conscientemente pelo povo, haja vista que a democracia não tem apenas a sua feição formal, não se limitando às vias institucionais da representação.
Democracia não é só forma ou processo, sendo um processo de construção de uma convivência comunitária voltada para os objetivos e finalidades em derredor do quais se dá a auto-compreensão da comunidade e, como tal, porta um sentido substantivo e materialmente informado.
Cornelius Castoriadis (2002, p. 263), rejeitando a concepção meramente procedimental de democracia, concebe o poder político explícito, político-institucional, como aquele que institui imposições sancionáveis, adentrando na exposição da sua consistência no excerto abaixo transcrito, in verbis:
O objetivo da política não é a felicidade, e sim a liberdade. A liberdade efetiva [...] é o que denomino autonomia. A autonomia da coletividade, que só pode se realizar pela auto-instituição e pelo autogoverno explícitos, é inconcebível sem a autonomia efetiva dos indivíduos que a compõem. A sociedade concreta, a sociedade que vive e que funciona, não é mais do que os indivíduos concretos, efetivos, reais.
A política se destina à eleição das prioridades e dos meios que se façam necessários para o melhor governo. Nos Estados democráticos contemporâneos os partidos políticos e os instrumentos de democracia representativa e participativa ocupam um papel cada vez mais relevante na formação da direção política; contudo, a política, com o advento da constitucionalização da ordem econômica, passa a ser também objeto material das constituições, razão pela qual a liberdade dos órgãos públicos para eleição das prioridades a ser objeto de realização não fica integralmente sujeita ao juízo dos representantes do povo, e nem do próprio povo.
E, em se procedendo à redução sociológica, não se pode deixar de concluir que a realidade a cuja modificação o dirigismo constitucional se destina é aquela propiciada pela exclusão social, pela progressiva pauperização e pela incapacidade de grande parte da população de obter as condições mínimas de subsistência, o que compõe a Questão Social nas plagas brasileiras, cada vez mais complexa e renovada.
Em se analisando a situação social brasileira, não se consegue sequer afirmar que a Questão Social tenha sido resolvida ou ao menos mitigada em qualquer momento da histórica republicana, até porque, como bem observa Lenio Streck (2002, p. 68-69), o Estado Social brasileiro não chegou a se instituir, partilhando de uma modernidade arcaica e tardia que só agrava os desequilíbrios estruturais provenientes de uma economia de mercado situada perifericamente.
Nesse sentido, apenas a título de ilustração da grávidade da Questão Social nos quadrantes brasileiros, destaca-se a taxa de pobreza em alguns Estados da Federação, alcançando 28,1% em Santa Catarina e 78,1% em Alagoas, com uma taxa nacional de 47,9%, como aponta Márcio Pochmann (2005, p. 117).
Ademais,
“Entre 1950 e 2000, mesmo registrando uma das mais altas taxas de crescimento econômico do mundo, o Brasil não conseguiu alcançar resultados sociais significativos, em comparação com o desempenho dos países desenvolvidos. Deve-se deixar claro que o problema nacional não foi o crescimento econômico, muito pelo contrário – especialmente entre os 1950 e 1980 –, mas sim a natureza e as características das políticas sociais adotadas no país, associadas ao padrão de acumulação concentrador de renda.” (POCHMANN 2005, P. 58-59)
Observam, ainda, os autores do Atlas da Exclusão Social, o caráter fracionado do sistema de proteção social brasileiro, clientelista e assistencialista, pouco redistributivo e emancipatório.
Os fatores pelos quais o Estado Social brasileiro não produziu efeitos redistributivos e emancipatórios desejados e esperados exorbitam o âmbito do presente estudo, mas podem ser indicados como sendo a falta de vontade política, a crise e o desencantamento do processo político-decisório, a eleição de prioridades de governo em detrimento das prioridades constitucionais, dentre outros fatores.
O surgimento do constitucionalismo dirigente em Portugal derivou da discrepância do estágio social de Portugal em cotejo com os estados centrais do capitalismo, mas não se aproxima da existência de uma Questão Social com a gravidade e complexidade de que se reveste a situação brasileira.
Assim, justifica-se que os anseios mais relevantes da comunidade política venham a ser incorporados no texto constitucional e, conseqüentemente, vinculem o sistema político e os representantes que ocupem os órgãos de direção política, confirmando-se uma constitucionalização da política.
Pode-se recorrer, inclusive, à doutrina de Ricardo Guastini, que aponta as características de uma constituição para que ocorra a constitucionalização do ordenamento jurídico2; a constitucionalização da política pela Constituição Federal de 1988 se manifesta pela existência daqueles elementos, agregados aos objetivos e aos princípios fundamentais, cuja compreensão/interpretação/aplicação sistemática com os direitos fundamentais conduz à existência de imposições constitucionais, abstratas e concretas, de transformação da realidade para redução das desigualdades sociais e regionais, erradicação da pobreza e da marginalização para construção de uma sociedade livre, justa e solidária, ou seja, há a constitucionalização da política para que se predetermine rumos e sentidos materialmente vinculantes que dirijam a política econômica, a ação estatal e as políticas públicas mediante os mecanismos de intervenção na atividade econômica e sobre a atividade econômica, o que não parece repercutir na eliminação da margem de apreciação política do legislador.
Numa constituição plasmada de direitos fundamentais e dotada de objetivos constitucionais que expressam o vínculo de solidariedade comunitária, não há espaço para eleição de prioridades políticas que se distanciem ou que contrariem as prioridades constitucionais.
Exposta e fundamentada a relação de constituição e política, pela constitucionalização da dinâmica política em virtude da parametricidade que as constituições dirigentes possuem, cumpre tratar, ainda que sucintamente, da eficácia dos direitos fundamentais.
Observe-se que não se pode mais conceber, como se costuma fazer, que apenas os direitos sociais exigem prestações positivas do Estado, o que poderia levar ao errôneo entendimento de que apenas a eles se reduziria o dirigismo constitucional. De qualquer sorte, explica-se o foco do dirigismo nos direitos sociais exatamente porque deles advém a imposição de transformação da realidade aos Poderes Públicos mediante a ação estatal e a formulação e implementação de políticas públicas.

2.1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS IMPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS
O caráter dirigente da constituição não resulta somente da existência de objetivos fundamentais, pois, como já ressaltado, na idêntica condição de mandados de otimização, os direitos fundamentais, globalmente considerados, atribuem ao Poder Público uma imposição constitucional abstrata de realização máxima; cada um, de per si, considerando diante de uma situação particular, pode dar ensejo a uma imposição constitucional que repercuta na formulação de uma política pública ou social.
De logo, insta destacar a parcial correção da relação feita por Canotilho (1994, p. 364-365) entre direitos fundamentais e programaticidade constitucional, cingindo ao âmbito dos direitos sociais a caracterização de direitos a prestações, conferindo às liberdades a clássica concepção de direitos negativos (2002, p. 1258-1261); posteriormente, corrigindo a concepção original e, ao que parece, aderindo a Alexy, sustenta a existência de direitos a ações negativas, direitos a ações positivas, seja por prestações materiais, seja por prestações normativas, e competências, sem relacionar tais âmbitos necessariamente com as liberdades ou com os direitos sociais, embora se refira àquelas como uma posição específica e distinta das demais.
A questão começou a ser bem elucidada por Cass Sunstein e Stephen Holmes (1999) que afirmaram o caráter positivo de todos os direitos fundamentais, expondo que as liberdades e a propriedade exigem também ações estatais que se destinam a protegê-las de ofensas de terceiros.
A fim de comprovar que todos os direitos são positivos e, conseqüentemente, demandam custos para o financiamento de sua implementação, Sunstein e Holmes (1999, p. 233-234) trazem um quadro que relaciona os direitos e os seus custos respectivos no contexto da política norte-americana.
O objetivo dos autores americanos é desvelar o caráter ideológico que subjaz à caracterização limitada aos direitos sociais, econômicos e culturais como positivos e, assim, condicionar a formulação e implementação de políticas sociais à reserva orçamentária, a que não estariam adstritos os direitos individuais caso realmente fossem apenas direitos negativos.
Como já apontado em outra oportunidade, Alexy também considera que os direitos fundamentais comportam, todos eles, prestações positivas, sejam materiais, sejam normativas.
Sustenta Alexy que os direitos à prestação se dividiriam em direitos de proteção e direitos de organização e procedimento, abrangendo, também prestações em dinheiro e bens, que se poderia considerar como direitos à satisfação de necessidades.
Os direitos à prestação consistiriam de forma impositiva numa atuação do Poder Público que poderia ser não apenas material e concreta, mas também normativa.
Não obstante isso se afigura mais pertinente o entendimento de que todos os direitos fundamentais têm uma dupla dimensão eficacial, defluindo uma eficácia negativa e outra positiva; a eficácia negativa abrangeria os deveres de respeito e preservação da autonomia privada, que demandam condutas omissivas; já a eficácia positiva seria composta pelos deveres de proteção, garantia promoção e satisfação.
Da dimensão negativa advêm os deveres de respeito à integridade do respectivo bem jurídico, expressando ao Poder Público e aos particulares um dever de abstenção, e de respeito à autonomia, que impede a interferência tanto estatal como privada no âmbito recôndito das decisões fundamentais acerca do livre desenvolvimento da personalidade.
Da dimensão positiva, por sua vez, extraem-se quatro deveres fundamentais, quais sejam: a) de proteção; b) organização e processo; c) de promoção; d) de satisfação.
Os deveres de proteção exigem do Poder Público medidas, usualmente normativas, que tutelem bens jurídicos em face da possível lesão por parte de outros indivíduos, grupos ou pessoas em geral, como, verbi gratia, o direito penal e a responsabilidade civil.
Os deveres de organização e processo, por sua vez, impõem ao Poder Público a criação de órgãos e vias dialógicas que possibilitem não apenas a tutela garantísta de direitos fundamentais que tenham sido lesados, como no caso dos órgãos judiciários e do processo judicial, mas também que viabilizem a realização dos direitos fundamentais, na forma da dimensão processual dos direitos fundamentais destacada primordialmente por Peter Häberle.
Já os deveres de promoção exigem do Estado a adoção de medidas de estímulo, facilitação e fomento para o acesso a determinado direito fundamental, como se dá com os programas de financiamento imobiliário e as ações afirmativas.
Os deveres de satisfação são aqueles que importam numa conduta material e concreta do Estado em favor do titular de determinado direito no sentido de prover o bem da vida a que se refere, como se dá com a saúde e a educação prestadas em regime gratuito pelo Poder Público.
Observe-se que tais dimensões dispensam expressa referência no texto constitucional, podendo resultar apenas e tão-somente da consagração do direito a partir de um determinado caso concreto, pois não há a relação biunívoca entre texto e norma, podendo resultar de um mesmo dispositivo várias normas, como um ou nenhuma norma constitucional, sempre a depender do caso concreto.
Posto isto, ainda que os direitos sociais e econômicos sejam os que mais diretamente conferem ao Estado a atribuição de transformação da realidade como tarefa, juridicizando a liberdade de conformação legislativa, há de se reconhecer a todos uma dimensão positiva, de que se infere serem, em certo sentido, também dotados de caráter dirigente, quando não em virtude da compostura deles próprios, ao menos pela correlação de adequação axiológica exigida pelo art. 3° do texto constitucional.
A elucidação dessas dimensões de direitos fundamentais possibilita uma melhor compreensão da capacidade dirigente da ordem constitucional, como também a averiguação adequada das opções políticas e da alocação de recursos promovida pelo legislativo na formulação e implementação de políticas pública, permitindo verificar se há conformidade com os programas constitucionais ou se há omissão ou contrariedade com as cláusulas de utopia.

3. O DIRIGISMO CONSTITUCIONAL SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS
A constitucionalização da política em sentido dinâmico, com a predisposição de condições de validade e legitimidade material das decisões político-governamentais, tem ocasionado o crescimento da preocupação atinente à temática das relações entre a constituição e as políticas públicas.
Segundo Eros Roberto Grau (2004, p. 65), a transformação que se opera em sede da ordem econômica constitucional, enquanto parcela da ordem jurídica, ocorre a partir do momento em que passam a juridicizar políticas públicas e a viabilizar os instrumentos de sua implementação, promovendo a melhoria e aperfeiçoamento da ordem econômica real, inclusive para preservá-la, o que anteriormente não acontecia, à vista da noção de auto-regulação que implicava a ordem econômica do ser, de modo que “O direito é afetado, então, por uma transformação, justamente em razão de instrumentar transformação da ordem econômica (mundo do ser).”
Não há concordância quanto à repercussão do dirigismo constitucional sobre as políticas públicas, sendo uma das vozes dissonantes a do próprio Canotilho (2006b, p. 124-125), refratário à judicialização da política.
Salienta o constitucionalista luso que a consagração de um catálogo de direitos sociais não importa na positivação de imposições constitucional que conformem e dirijam o desenvolvimento de políticas públicas relativamente aos direitos sociais, econômicos e culturais, exemplificando com o direito à educação, que seria de inequívoca sede constitucional quanto ao acesso a todos os graus de ensino, mas não o seria previsão da gratuidade de acesso a todos os graus, diante do risco de engessar a respectiva política pública, além de conduzir às questões problemáticas de limites da ação do Estado e da ingovernabilidade, trazidas ou mais dificultadas pelo texto constitucional.
Ao reconhecer que as constituições não podem mais ser concebidas como portadoras de um caráter sagrado ou como responsáveis pela consagração sintética das políticas públicas, afirma não poderem deixar de abrigar exigências constitucionais mínimas, conforme sustenta Rawls, entendidas como “[...] complexo de direitos e liberdades definidoras das cidadanias pessoal, política e econômica intocáveis pelas maiorias parlamentares”, compondo um critério fundamental de aferição de legitimidade moral e material assecuratório em face da diluição moral mediante desregulações, flexibilizações e liberalizações, bem como da deslegitimação ética.
Posteriormente, entretanto, embora parecendo manter a sua posição, admite a tensão que existe sobre a constitucionalização de políticas públicas (CANOTILHO, 2003, p. 20).
Os obstáculos suscitados, pertinentes à ingovernabilidade e à limitação do processo democrático, não podem obscurecer ou afastar a dimensão projetiva da política inerente ao dirigismo constitucional; não se pode admitir a restrição erigida pelo constitucionalista português, posto que a irradiação normativa das imposições constitucionais, abstratas e concretas, sobre as políticas públicas é uma das principais dimensões do caráter emancipatório e garantista dos programas constitucionais.
Ora, não há como constituir um projeto de direção do futuro, como impedir que o futuro não seja guiado pelas forças cegas do mercado ou pelo acaso (OST, 2005, p. 28), como consolidar na temporalidade social a imbricação dialética entre tradição e futuro na realidade da atualidade constitucional em se entendendo que a Constituição Federal de 1988 não deve ser compreendida como vinculante do planejamento, da formulação, da implementação, da execução e do controle das políticas públicas.
As políticas públicas, por sua vez, inserem-se no âmbito mais amplo da ação estatal e dependem do planejamento, que, ao contrário do que poderia induzir o art. 174 da Constituição Federal, não é modo de intervenção do Estado (GRAU, 2004, p. 169-130), mas exigência prévia para a eficiência de toda e qualquer ação estatal, quer para o desenvolvimento de uma política pública, quer no que respeita ao próprio desenvolvimento nacional.
Assim, cumpre trazer à colação a doutrina de Gilberto Bercovici (2005, p. 69-70), abaixo transcrita, in verbis:
O planejamento coordena, racionaliza e dá uma unidade de fins à atuação do Estado, diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou casuística. O plano é a expressão da política geral do Estado. É mais do que um programa, é um ato de direção política, pois determina a vontade estatal por meio de um conjunto de medidas coordenadas, não podendo limitar-se à mera enumeração de reivindicações. E por ser expressão desta vontade estatal, o plano deve estar de acordo com a ideologia constitucionalmente adotada. O planejamento está, assim, sempre comprometido axiologicamente, tanto pela ideologia constitucional como pela busca da transformação do status quo econômico e social.
Logo, o dirigismo constitucional repercute desde o planejamento até a execução e o controle e avaliação das políticas públicas, justamente pela constitucionalização do político e, mais ainda, pelas cláusulas de programaticidade constitucional que importam em promessas e compromissos de construção de um futuro.
Em verdade, Madeleine Grawitz e Jean Leca (1985, p. 6-8) concebem as políticas públicas como “[...] forma de um programa de ação próprio a uma ou mais autoridades públicas ou governamentais”, esclarecendo que delas decorre uma estrutura abstrata de comportamentos e normas.
Já na seara jurídica, Maria Paula Dallari Bucci (2006, p. 27) considera que as políticas públicas são microplanos destinado à racionalização técnica da ação pública em vista dos objetivos que são assinalados, estimando determinados resultados.
As políticas públicas apresentam-se, então, como um processo de ação estatal que se desenvolve desde o planejamento, em que são identificadas as prioridades, os objetivos concretos, os recursos disponíveis, os meios necessários, além de verificadas possíveis intercorrências. A partir daí, dá-se a formulação da política, seguida da sua implementação, execução e controle.
A força dirigente das normas constitucionais repercute necessariamente nos âmbitos do processo de formulação e execução de políticas públicas, não necessitando sequer da previsão explícita de uma determinada política pela Constituição Federal, pois os objetivos fundamentais demandam a realização por políticas que os levem em conta e procurem atendê-los, como também se dá com os direitos fundamentais.
O âmbito do presente estudo, entretanto, não comporta o apronfundamento da questão, afigurando-se suficiente apenas ressaltar que, notadamente no que se refere à identificação das prioridades e dos objetivos, há uma estrita vinculação constitucional, não sendo admissível que prioridades de governo sejam prestigiadas em detrimento de prioridades que resultaram do pacto comunitário e fundacional do Estado.
Da mesma forma, no âmbito das demais etapas integrantes do processo de formulação de políticas públicas, o caráter dirigente pode ter relevo, como se dá com uma política pública já planejada, formulada e com a devida alocação de recursos, mas que ainda não está em execução sem que haja uma causa fundada em prioridade igualmente constitucional para tanto.
Não se está pretendendo eliminar a liberdade de conformação legislativa, mas apenas evitar e impedir que o jogo político-partidário, tão sem identidade e destituído de qualquer função atinente ao interesse público, partilhe com exclusividade das decisões sobre o que é mais importante para a comunidade política.
Por conseguinte, tem-se devidamente configurada a função de resistência e de projeção do dirigismo constitucional, assegurando o mínimo vital e promovendo, mediante a programaticidade que incide sobre as políticas públicas, o máximo existencial.
Nesse contexto, a operatividade do dirigismo constitucional sobre a política, com a resistência e a projeção, entremostra a atualidade e o progressivo vigor vicejante da Constituição brasileira de 1988, em plena jovialidade, distanciando-se cada vez mais dos arautos do apocalipse que apregoavam a sua condição de moribunda.
Com isso, e pelo que exposto, não há como se admitir que tenha morrido o dirigismo constitucional brasileiro, cumprindo refletir, para desenvolver, sobre a força dirigente da Constituição sobre a política.
Em verdade, mesmo com todas as dificuldades delineadas, o caráter meta-garantista da doutrina e o desempenho da jurisdição constitucional têm como resguardar as duas dimensões, de resistência e de projeção do Estado Social, das utopias jurídicas e dos direitos fundamentais.

4. CONCLUSÃO
As políticas públicas revelam-se cada vez mais atreladas ao texto constitucional, vinculadas à programaticidade dos objetivos fundamentais e dos direitos fundamentais, cabendo ao dirigismo constitucional irradiar sobre elas a dimensão não apenas de resistência – rechaçando aquelas que eventualmente decorram do ideário neoliberal –, mas projetiva de futuro.
Tal imbricação entre Constituição e política é de sobrelevada relevância diante do desencantamento da política e da crise da democracia representativa, repercutindo na defasagem e deficiência da política como instância de direção comunitária, o que se agrava diante da progressiva preponderância do poder econômico sobre o poder político, do mercado sobre o parlamento, dos interesses econômicos sobre os interesses públicos.
A juridicização da política pela Constituição brasileira leva a uma judicialização da política, conferindo ao Poder Judiciário uma importante participação na conformação e no controle das políticas públicas, sem que tal imperativo conduza a um governo de juízes, assegurando-se a liberdade de conformação do legislador, que não vai a ponto de permitir que se olvide os objetivos e as finalidades que gozam de prioridade constitucional e que se relegue a política de desenvolvimento dos direitos fundamentais.
A Constituição brasileira de 1988 permanece viva, emancipatória, libertária, includente e processualmente efetivada, em direção ao cumprimento dos programas e da realização ótima das utopias constitucionais, projetadas pela comunidade política, incidindo sobre as políticas públicas e predeterminando as prioridades a serem tomadas a sério e implementadas pelos órgãos de representação popular.