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quarta-feira, 6 de abril de 2011

TERRAS DEVOLUTAS NAS CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS

Autor: Dirley da Cunha Júnior 
Juiz Federal
1. INTRODUÇÃO
 
O presente trabalho - TERRAS DEVOLUTAS NAS CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS - abordará a disciplina dispensada às terras devolutas por nossas Constituições Federais, desde a de 1891 até a atual, fazendo, entretanto, uma rápida incursão histórica, passando por seu conceito, até chegar no tratamento dado a essas terras por nossas Cartas Republicanas.

2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Face a descoberta das terras brasileiras por Portugal, a legislação sobre terras que vigorou inicialmente no Brasil era portuguesa, até porque, em razão da descoberta, a Portugal pertenciam as nossas terras. Aliás, com grande propriedade já dizia MESSIAS JUNQUEIRO que "a história do nosso país começa com um grande paradoxo: antes de descoberto o Brasil suas terras já pertenciam a Portugal". O grande RUY CIRNE LIMA, sem discrepar de tal afirmativa, declarou que "a história territorial do Brasil começa em Portugal".

Deveras, as terras brasileiras pertenciam a Portugal, ao patrimônio público da Coroa. Ou, como disse LUIS DE LIMA STEFANINI, "o território brasileiro era uma propriedade pública da Coroa. Esta, como entidade de Direito Público, e não como entidade privada - propriedade do Rei de Portugal - isto a entender a situação do Chefe de Estado, como representante da Nação".

Assim, como chefe da Coroa, o Monarca começou a conceder porções de terra na colônia: era o regime das capitanias hereditárias. Surge, com isso, interessante problema quanto à natureza jurídica dessas capitanias. Alguns sustentavam, talvez pela impressão causada pela terminologia empregada nas cartas dos donatários - nas cartas falava-se em irrevogável doação entre vivos -, que, além do aspecto da hereditariedade, a Coroa não mais possuía terras na então Colônia após as cessões aos donatários, tal como estas fossem simples negócios jurídicos translativos de direito de propriedade. Exemplo disso, temo-lo no pronunciamento de RODRIGO OTÁVIO, ao solucionar questão entre a Prefeitura do Distrito Federal e os Beneditinos na qualidade de árbitro: "A Coroa com a cessão aos donatários, pode-se dizer, deixou praticamente de possuir na Colônia qualquer porção de terras; ela cedera tudo quanto possuía e nada mais tinha para conceder".
Entretanto, a despeito daquela terminologia empregada nas cartas dos donatários e do aspecto da hereditariedade, estes atos da Coroa para com os donatários não eram negócios translativos de domínio. Os donatários recebiam apenas poderes políticos, como governantes mesmos, para exercê-los, em nome da Coroa, em circunscrição territorial delimitada na carta.
Inolvidável, todavia, é que uma parte de terras das Capitanias era transmitida ao donatário na própria carta, e, decerto, sobre esta parte o donatário exercia não só sua autoridade política, como também direito de propriedade.
Mas, como assevera COSTA PORTO, "o regime das capitanias foi, entretanto, efêmero e, pela própria fragilidade íntima e pelo pequeno tempo em que funcionou, quase não deixou traços em nossa estrutura interna, não passando de mero incidente episódico, sem repercussão decisiva em nossa evolução"....
Acentua CIRNE LIMA que, antes da instituição das capitanias, "o primeiro monumento das sesmarias no Brasil é a carta patente dada a Martim Afonso de Souza, na vila do Crato, a 20 de novembro de 1530". Mas, continua o eminente autor, "trouxe Martim Afonso de Souza para o Brasil, na expedição de 3 de dezembro de 1530, três cartas régias, das quais a primeira o autorizava a tomar posse das terras que descobrisse e a organizar o respectivo governo e administração civil e militar; a segunda lhe conferia os títulos de capitão-mor e governador das terras do Brasil; e a última, enfim, lhe permitia conceder sesmarias das terras que achasse e se pudesse aproveitar".
Alguns anos após, "a 28 de fevereiro de 1532 - a informação ainda é de CIRNE LIMA -, D. JOÃO III escrevia, entretanto, a Martim Afonso de Souza, participando-lhe a resolução que tomara de dividir o litoral do Brasil, de Pernambuco ao Rio da Prata, de modo a formar capitanias com cincoenta léguas da costa, dentre as quais prometia, desde então, cem léguas a Martim Afonso e cincoenta a Pero Lopes, seu irmão".
Face o fracasso do sistema de capitanias, D. JOÃO III extinguiu-as e criou o Governo-geral com a nomeação de Tomé de Souza, a 17 de dezembro de 1548.
Porém, o fato é que tanto o capitão-mor e governador Martim Afonso de Souza, como os donatários e o Governador-geral tinham o poder político-administrativo de conceder sesmarias.
Impõe-se esclarecer, todavia, que o regime das sesmarias que vigora entre nós, nada tem de semelhante com o regime das sesmarias - a não ser o nome - que vigorava em Portugal, ao tempo de D. Fernando I. A um, porque a Lei de Sesmarias imposta por D. Fernando I teve por fundamento as graves crises econômica e social pelas quais passava Portugal, de modo que aquela legislação tinha por objetivo obrigar os proprietários a cultivar suas terras para resolver o problema de abastecimento de gêneros alimentícios. E aqueles que não pudessem lavrar todas suas terras deveriam arrendar o excesso, pelo que devia receber certa quantia. A fiscalização desta política era incumbida aos "sesmeiros", aos quais cabia arbitrar a quantia a ser paga pelos lavradores aos senhorios, sempre que entre ambos não houvesse acordo, e até mesmo confiscar a terra, distribuindo-a com quem a quisesse aproveitar, quando o senhorio não quisesse trabalhá-la diretamente, nem aforá-la.
Aqui, a situação naquele momento era completamente oposta, quer dizer, existia um território extenso para uma pequena população, e aquele precisava ser ocupado por esta de qualquer forma.
A dois, o sesmeiro na Colônia (que não se confunde com o sesmeiro em Portugal, que era a autoridade fiscalizadora, como vimos acima) deveria pagar o tributo do dízimo devido à Ordem de Cristo; em Portugal, pagava-se uma renda ao proprietário, que não poderia recusá-la.
As concessões de sesmarias, entrementes, passaram a ser fonte de escândalos administrativos, uma vez que só os mais ricos as recebiam. E por isso mesmo, elas - as sesmarias - foram a grande fonte do estabelecimento do latifúndio no Brasil. Já asseverava COSTA PORTO, que "uma das principais distorções do nosso sesmarialismo - fruto, em grande parte, do desazo em ignorar as peculiaridades da Conquista, aplicando-se-lhe o disciplinamento imaginado para a Metrópole - ocorreria de respeito à estrutura fundiária e cuja síntese seria esta: enquanto no Portugal dos fins do século 14, a prática do sesmerialismo gerou, em regra, a pequena propriedade, no Brasil foi a causa principal do latifúndio".
A partir de 1549, o regime das sesmarias sofreu uma série de alterações, através de leis especiais. Assim, pela Carta Régia de 27.12.1695, fixou-se um limite máximo de 05 (cinco) léguas de área a ser doada, assim como instituiu-se, além do dízimo, o "pagamento de um foro, segundo a grandeza ou bondade da terra". Pela Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, instituiu-se a revisão e confirmação pelo Rei dos atos de doação, assim como o pagamento de um foro por légua de terra, exigindo-se, ainda, a medição e demarcação para o fim de saber-se o valor do foro devido. E pelo Alvará de 05 de outubro de 1795, deu-se ênfase às exigências de medição e demarcação, proibiu-se a concessão de sesmarias aos que já tivessem adquirido concessão anterior, reduziu-se o limite máximo de áreas das sesmarias para três léguas, sendo que em algumas capitanias o limite máximo era de uma légua e, em outras, de apenas meia légua.
Em 17 de julho de 1822, pela Resolução n. 17, o Príncipe Regente D. Pedro, ao decidir um apelo que lhe foi dirigido por Manoel José dos Reis, morador do Rio de Janeiro, que lhe rogava ser conservado na posse das terras em que vivia há mais de vinte anos com sua numerosa família de filhos e netos, não sendo ditas terras compreendidas na medição de alguma sesmaria, mesmo contra o parecer do Procurador da Coroa e Fazenda, de que o meio competente era o interessado requerer as mencionadas terras por sesmarias, determinou que o suplicante ficasse na posse das terras que tinha cultivado e, no mesmo ato, suspendeu todas as sesmarias futuras do Brasil até a convocação da Assembléia Geral Constituinte.
Dessarte, o regime de concessão de sesmarias encerrou-se em 17 de julho de 1822, data daquele ato, e não em 18 de setembro de 1850 como menciona IGOR TENÓRIO, quando assinala que "a Lei das Sesmarias prevaleceu no direito brasileiro até 18 de setembro de 1850, quando foi promulgada a Lei nº 601".
Sem uma legislação específica, o quadro fundiário torna-se mais tumultuado, passando a propriedade a ser adquirida pela posse, pela ocupação. Com a ocupação, os pequenos agricultores foram beneficiados, ressaltando CIRNE LIMA que "era a ocupação, tomando o lugar das concessões do Poder Público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado, sobre o senhor de engenho ou fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole".
De observar-se, pois, que, se por um lado a extinção das sesmarias teve a vantagem de não mais permitir novos latifúndios, a falta de uma legislação imediata gerou maior caos à nossa situação fundiária, até que, em 18 de setembro de 1850, foi editada a Lei nº. 601, que representou um marco em nossa legislação agrária.
Os pontos básicos da Lei 601 foram: a proibição de doações de terras devolutas, exceto as situadas nas zonas de dez léguas limítrofes com países estrangeiros; a conceituação de terras devolutas, conceito este que até hoje serve de base para as legislações estaduais; a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se achassem cultivadas ou com princípios de cultura e morada habitual do sesmeiro ou concessionário ou algum representante; a legitimação das posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se achassem cultivadas ou com princípio de cultura, e morada habitual do posseiro ou representante; o usucapião nas sesmarias ou outras concessões do Governo; a discriminação das terras devolutas; a reserva de terras devolutas; o registro paroquial; as formas de venda de terras devolutas, etc..
Esta Lei - 601, de 1850 - foi regulamentada pelo Decreto nº. 1.318, de 30 de janeiro de 1854.

3. CONCEITO DE TERRAS DEVOLUTAS

Urge, para compreender o conceito objetivado, estabelecer-se uma distinção entre terras públicas (lato sensu e stricto sensu) e terras devolutas.
Isoladamente tomada, a expressão terras públicas é gênero. É o que se pode chamar de terras públicas lato sensu. Nesse sentido amplo, são terras públicas todas aquelas pertencentes ao poder público, ou seja, são bens públicos determinados ou determináveis que integram o patrimônio público, incluindo-se, aí, as terras devolutas. Assim, as terras devolutas são espécie de terras públicas lato sensu. A outra espécie são as terras públicas stricto sensu.
Temos, pois, duas espécies de terras públicas lato sensu (gênero): as terras devolutas e as terras públicas stricto sensu. Esse é o sentido, pois, empregado no art. 188 da CF de 1988, ao mencionar que "A destinação de terras públicas e devolutas...". Entenda-se, aí, terras públicas stricto sensu.
E terras públicas stricto sensu, são aqueles bens determinados que integram o patrimônio público como bem de uso especial ou patrimonial. Assim, v. g., é terra pública stricto sensu uma fazenda de propriedade da administração pública, que esta utiliza para fins de pesquisa.
De notar-se, pois, que a noção de bens determinados e determináveis é fundamental para compreensão do que sejam terras devolutas. Tanto que as terras devolutas passam a ser terras públicas stricto sensu depois de discriminadas, vez que passam a ser bens determinados. Logo, não fosse a existência de terras devolutas, desnecessária seria a distinção entre terras públicas lato sensu e stricto sensu. Teríamos, apenas, terras públicas, como sói acontecer em quase todos os países.
O conceito de terras devolutas, todavia, não é uniforme, tendo em vista que a Lei Imperial nº. 601, de 1850, deu uma definição de terras devolutas por exclusão.
"Comumente, encontramos opiniões - informa PAULO GARCIA - sustentando que devolutas são as terras que retornaram ao patrimônio da Coroa Portuguesa, após a extinção do regime de concessão de capitanias". Contudo, afirma o mesmo autor, com razão, "isto, porém, não exprime a realidade, pois: a) nem todas as terras do Brasil-Colônia foram objeto de concessão aos donatários das Capitanias. Essas capitanias eram perfeitamente delimitadas e o número delas abrangeu apenas um limitado e restrito pedaço do solo brasileiro; b) por outro lado, muito território o Brasil veio a adquirir, após a cessação do regime das capitanias. Desta forma, essas novas terras que passaram a integrar a extensão do solo pátrio (inclusive as do território do Acre) não poderiam ser tidas como devolutas, pois que não foram, em época alguma, devolvidas à Coroa Portuguesa".
A Lei Imperial nº. 601, no seu art. 3º, dá o seguinte conceito de terras devolutas: as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal (§ 1º); as que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura (§ 2º); as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei (§ 3º); as que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei (§ 4º).
No seu art. 8º, preceitua mencionada Lei: Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados serão reputados caídos em comisso, e perderão por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da presente lei, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.
Mais recentemente, ao dispor sobre os bens imóveis da União, o Decreto-lei nº. 9.760, de 05.09.1946, deu o seguinte conceito de terras devolutas:

"Art. 5º - São terras devolutas, na faixa de fronteiras, nos Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual, territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado:
a) por força da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, Decreto nº. 1318, de 30 de janeiro de 1854, e outras leis e decretos gerais, federais e estaduais;
b) em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da União ou dos Estados;
c) em virtude de lei ou concessão emanada de governo estrangeiro e ratificada ou reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo Brasil, em tratado ou convenção de limites;
d) em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada;
e) por se acharem em posse contínua e incontestada, por justo título e boa fé, por termo superior a 20 (vinte) anos;
f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 (trinta) anos, independentemente de justo título e boa-fé;
g) por força de sentença declaratória proferida nos termos do art. 148, da Constituição Federal, de 10 de novembro de 1937.
Parágrafo único - A posse a que a União condiciona a sua liberalidade não pode constituir latifúndio e depende do efetivo aproveitamento e morada do possuidor ou do seu preposto, integralmente satisfeitos por estes, no caso de posse de terras situadas na faixa da fronteira, as condições especiais impostas na lei".

Eis o conceito da lei. vejamo-lo na doutrina.

PAULO GARCIA dá um conceito genérico e um restrito, quando declara que "em sentido genérico, terras devolutas são as que integram o patrimônio dos Estados, como bens dominicais. Em sentido restrito, são as terras que, tendo passado ao domínio dos Estados, por força do art. 64, da Constituição de 1891, não se achavam, em 1850, no domínio particular nem haviam sido objeto de posse por qualquer do povo".
Para BEVILÁCQUA, devolutas "são as terras desocupadas, sem dono". Teixeira de Freitas, na Consolidação das leis civis, opina que são devolutas "as terras desocupadas, não possuídas". Do mesmo modo é o pensamento de Epitácio Pessoa.
Segundo MESSIAS JUNQUEIRE, "terras devolutas são as que não estão incorporadas ao patrimônio público, como próprias, ou aplicadas ao uso público, nem constituem objeto de domínio ou de posse particular, manifestada esta em cultura efetiva e morada habitual".
PONTES DE MIRANDA oferece-nos dois conceitos distintos. Num primeiro momento, diz que "terras devolutas são as terras devolvidas ao Estado (União, Distrito Federal, Estado-Membro, Território ou Município), se não estão ainda ocupadas, ou se estão na posse de particulares".
Num segundo momento, revela que "devoluta é a terra que, devolvida ao Estado, esse não exerce sobre ela o direito de propriedade, ou pela destinação ao uso comum, ou especial, ou pelo conferimento de poder de uso ou posse a alguém".
LUÍS DE LIMA STEFANINI entende "as terras devolutas como sendo aquelas espécies de terras públicas (sentido lato) não integradas ao patrimônio particular, nem formalmente arrecadadas ao patrimônio público, que se acham indiscriminadas no rol dos bens públicos por devir histórico-político".
A doutrina, como de observar-se, apresenta um conceito incompleto, merecendo, pois, os reparos , modestamente consignados adiante.
O conceito de terras devolutas, no seu significado jurídico, nem sempre coincide com o seu significado etimológico (terra devolvida). Entendemos, pois, que no art. 8º da Lei Imperial 601, a expressão devoluto foi empregada no sentido de devolvido. Os possuidores de certa quantidade de terra (devoluta), seja por posse ou por outro título qualquer, que não procedessem a medição no prazo, só podiam ser mantidos na posse da área cultivada, enquanto o restante da área (terras incultas) era tida como devoluta, ou seja retornava ao domínio do Estado. Só em relação aos possuidores ou sesmeiros caídos em comisso poder-se-ia falar em devoluto no sentido de devolvido. Mesmo assim, vale lembrar que mesmo as terras dadas por sesmeiros ou outras concessões do Governo, ainda que caídas em comisso, podiam ser revalidadas (§ 3º do art. 3º da Lei 601).
Mas do art. 3º da Lei 601 não se pode tirar a mesma conclusão, o mesmo significado de devolução. Do disposto neste artigo conclui-se que há um conceito legal de terras devolutas por exclusão, quer dizer, afora as situações previstas nos §§ 1º a 4º, o restante é de ser considerado como terra devoluta. Por outro lado, o outro significado da expressão, ou seja, devoluto no sentido de vago, sem dono, desocupado, a rigor também não serve para qualificar o instituto. Por isto mesmo, pensamos que a expressão é inadequada e só deve ser usada porque consagrada. Dessarte, incorreto o conceito dado pelo mestre CLÓVIS BEVILÁCQUA, acima reproduzido.
Incorretos, outrossim, os conceitos apresentados pelo grande PONTES DE MIRANDA, porque refletem apenas um dos significados legais, que é o de devoluto no sentido de devolvido.
Temos, por exemplo, terras devolutas que não foram devolvidas ao Estado, mas que este adquiriu, numa época pelo direito de conquista do descobridor e que passaram a ser propriedade do Estado brasileiro, após sua independência, e noutra época por compra a outros Estados, como aconteceu com as terras que hoje formam o Estado do Acre.
Assim, considerando os textos legais, são terras devolutas aquelas adquiridas pelo Estado brasileiro por sucessão à Coroa portuguesa tendo em vista os fatos históricos do descobrimento e da independência, e por compra ou permuta a outros Estados, que não foram alienadas, por qualquer forma admitida à época, aos particulares, ou que por estes não foram adquiridas por usucapião, assim como aquelas que, transmitidas aos particulares, retornaram ao patrimônio do Poder Público por terem caído em comisso ou por falta de revalidação ou cultura, não se destinando a algum uso público, encontrando-se, atualmente, indeterminadas.
Verifica-se, portanto, em consonância com o conceito acima adotado, três espécies de terras devolutas: a) as que pertenceram à Coroa portuguesa pelo descobrimento; b) as que o Brasil adquiriu por compra ou permuta; c) as que, inicialmente pertencentes à Coroa portuguesa, foram alienadas e retornaram ao patrimônio público por terem caído em comisso e por falta de revalidação e falta de cultura.
Excluídas dessas terras, encontram-se aquelas destinadas a algum uso público, seja uso comum, seja uso especial, como resta claro do disposto no § 1º do art. 3º da Lei Imperial 601.
Outro tanto sucede com as terras particulares. Estas, inicialmente públicas, quando transmitidas aos particulares (na forma preconizada pela legislação da época), deixaram, ipso fato, de ser devolutas, mas retornavam ao patrimônio público as havidas por sesmarias ou outras concessões do Governo que caíram em comisso por falta de medição, confirmação e cultura, ou que, mesmo caídas em comisso, não foram revalidadas (§§ 2º e 3º da Lei 601).
Em síntese, pela Lei 601/1850, devoluta é toda terra que, por qualquer título, não se acha aplicada a nenhum uso público, por um lado, e, por outro, não integrado, por qualquer título, ao patrimônio privado.
Do conceito acima, depreende-se, como um dos seus aspectos fundamentais, o fato de as terras devolutas serem, hoje, indeterminadas. Nem sempre, porém, foi assim, vez que, no início, toda terra existente em nosso território pertencia ao Estado. Mas, com as sucessivas, confusas e desorganizadas alienações aos particulares, a situação territorial chegou a um ponto tal, que o Estado não tem condições de saber onde se encontram estas terras, nem a real dimensão delas. O certo é que, atualmente, só por meio da ação discriminatória tem o Estado condições de separar as terras devolutas das terras particulares e das terras públicas em sentido estrito. Só por meio dessa ação é que é possível determinar as terras devolutas, antes indeterminadas, deixando, consequentemente, de serem devolutas para ser consideradas terras públicas stricto sensu.

4. TERRAS DEVOLUTAS NAS CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS

Se, no antigo regime, as terras devolutas pertenciam à Nação, por força da primeira Constituição da República, passaram para o domínio do Estado-membro, em cujo território estivessem situadas.
De feito, ex vi do art. 64 da Constituição de 1891, "pertencem ao Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais".
Como nota JOÃO BARBALHO, "já no antigo regime, posto que não fossem ainda as Províncias entidades políticas, propriamente tais, tinham, entretanto (se bem que limitado e devido à cessão do governo central), seu domínio territorial, dispunham de terras públicas suas, pertencia-lhes parte das terras devolutas. Com a organização federativa, tornaram-se verdadeiras entidades políticas, passaram a ser Estados e gozar, nesta qualidade, das prerrogativas e direitos inerentes, entre estes o domínio territorial, sem o qual não se concebe a existência do Estado, qualquer que seja o regime sob que se ache e seja qual for sua extensão. Era natural, era forçoso, pois, que aos Estados ficassem as terras devolutas".
Deveras, os bens estaduais, que pertenciam, no Império, às províncias, passaram a pertencer aos Estados-membros, na República. As leis 514, de 28.09.1848 (art. 16) e 3.396, de 24.06.1858 (art. 4º), antes, portanto, da primeira Constituição da República, já tinham passado para as Províncias determinadas porções de terras devolutas, para fins de colonização. E, por força do art. 64 da CF/1891, todas as terras devolutas passaram ao domínio dos Estados-membros, ressalvando-se aquelas consideradas indispensáveis para defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais, que permaneceram com a União. A constituição de 1891, assim, classificou as terras devolutas em federais e estaduais, pertencendo aos Estados as situadas em seus respectivos territórios e à União somente a porção de território indispensável à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Quanto às terras devolutas municipais, esta possibilidade depende da vontade do Estado-membro em partilhar, com seus municípios, as terras devolutas.
A Constituição de 1934 reiterou a fixação da primeira Constituição Republicana, ao prescrever que "são do domínio dos Estados os bens de propriedade destes pela legislação atualmente em vigor" (art. 21) e que "são bens do domínio da União os bens que a esta pertencerem, nos termos das leis atualmente em vigor" (art. 20, I).
A Constituição de 1946, seguindo expressamente a literalidade da Carta de 1891, estatuiu que "incluem-se entre os bens da União: a porção de terras devolutas indispensável à defesa das fronteiras, as fortificações, construções militares e estradas de ferro" (art. 34, II).
A Carta de 1967 atribuiu à União "a porção de terras devolutas indispensáveis à defesa nacional ou essenciais ao seu desenvolvimento econômico" (art. 4º, I). Nessa mesma linha, a Emenda nº. 01, de 1969, que também atribuiu à União "a porção de terras devolutas indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais" (art. 4º, I). Tais preceitos significam que a União retoma a propriedade da porção de terras devolutas, ainda pertencentes aos Estados, na exata medida em que sejam elas indispensáveis às finalidades previstas na Constituição, com dispensa de prévia e justa indenização em dinheiro. Na verdade, sem qualquer retribuição. Em outras palavras, toda vez que a União necessitar, para a segurança e o desenvolvimento nacionais, de porção de terras adquiridas pelo Estado federado em razão do art. 64 da Constituição de 1891, adquire-lhes o domínio independentemente de desapropriação e, portanto, de indenização, salvo por benfeitorias.
Finalmente, a vigente Constituição de 1988, mais técnica que as anteriores, estatui que "são bens da União: as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei" (art. 20, II) e que "incluem-se entre os bens dos Estados: as terras devolutas não compreendidas entre as da União" (art. 26, IV).
A nova redação é mais abrangente, sob certos aspectos, do que o texto anterior e, à luz de outros, menos. É que, na dicção da EC n. 01/69, pertenciam à União a porção de terras devolutas indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais. À toda evidência, a expressão "indispensável à segurança e ao desenvolvimento nacionais" ofertava gama ilimitada, a partir do conceito amplo de segurança e de desenvolvimento, na dilatada concepção da Escola Superior de Guerra. Aliás, esse texto de 69 reproduz a linha única que inspirou o movimento de 64, ou seja, "segurança e desenvolvimento".
Inobstante esse conceito de segurança nacional ter sido restringido pelo Supremo Tribunal Federal, em voto explicativo do Ministro Aliomar Baleeiro, ele ainda era mais amplo do que o atual, que ficou limitado "à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, além das vias federais de comunicação". Nesse aspecto, portanto, o atual texto é menos abrangente
Constitui o grande acréscimo a menção a "preservação ambiental", de sorte que pertencem à União, e não aos Estados-membros, as terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental. E, dada a importância dessas terras, o constituinte considerou-as indisponíveis (CF, art. 225, § 5º).
Destarte, a redação atual é mais ampla sob alguns aspectos, como o que diz respeito à preservação ambiental, cujas terras consideradas bens da União devem ser voltadas para tal desiderato, e mais restritivo, visto que eliminou, o constituinte, sejam considerados bens da União terras para induzir o desenvolvimento. O próprio conceito de segurança fica contraído.
Dessa forma, em harmonia com o texto da Carta Magna de 1988, as terras devolutas, não compreendidas entre as da União, a saber, as registradas no art. 20, II ("as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei"), PERTENCEM OU SÃO INCLUÍDAS ENTRE OS BENS DO ESTADO-MEMBRO, EM QUE SE SITUAM. A dominialidade do Estado federado, no que pertine a terras devolutas, é constatada, de ver-se, por exclusão: as que não pertencerem à União, nos termos do art. 20, II, da CF/88, pertencem aos Estados.
A definição daquelas terras indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental será dada por Lei, obviamente, por Lei Federal, porquanto a respeito de terras devolutas da União. Agora, sobre o conceito legal de terras devolutas, aproveita-se, in totum, o ministrado pela Lei Imperial 601, de 1850, cuja oportunidade já tivemos em comentá-la.
Quanto à comprovação, na prática, da existência de terras devolutas, parece ter hoje se pacificado, na doutrina e jurisprudência, que não são todas aquelas em que não há inscrição imobiliária a favor de particular. A União precisa, além de provar que não há o registro, provar que a terra lhe pertence, não estando entre as terras devolutas do Estado. A concepção de que o que não estiver expressamente registrado a favor de alguém, nas áreas enunciadas, pertence à União, está definitivamente afastada, prevalecendo a dupla necessidade de comprovação, a saber: a) inexistência de registro; b) propriedade da União.

5. CONCLUSÃO

Concluo afirmando que terras devolutas são terras públicas lato sensu, indeterminadas ou determináveis, sem nenhuma utilização pública específica e que não se encontram, por qualquer título, integradas ao domínio privado. Quando determinadas via ação discriminatória, passam a ser terras públicas stricto sensu.
As terras devolutas pertencem, em regra, desde a Constituição de 1891 (art. 64), aos Estados-membros, excetuando-se aquelas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, que são de propriedade da União (CF/88, art. 20, II).
O só fato de inexistir o registro da terra não caracteriza a existência de terras devolutas, devendo o poder público provar sua existência e propriedade.

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