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sexta-feira, 20 de março de 2015

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E ACESSO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL.

 Controle de Constitucionalidade e Acesso à Jurisdição Constitucional


Dirley da Cunha Júnior[1]
SUMÁRIO: 1. Considerações gerais; 2. Os modelos difuso e concentrado de Controle de Constitucionalidade e o acesso à Jurisdição Constitucional; 2.1. O modelo difuso de Controle de Constitucionalidade e o acesso à Jurisdição Constitucional; 2.2. O modelo concentrado de Controle de Constitucionalidade e o acesso à Jurisdição Constitucional.
1. Considerações gerais

O Controle de Constitucionalidade, numa perspectiva estruturante, consiste num conjunto de normas constitucionais que delineiam um sistema de defesa das Constituições rígidas, cuja finalidade é a proteção da integridade e higidez do texto constitucional e a efetividade de suas normas.

Em razão disso, o Controle de Constitucionalidade se destaca devido a sua importância para a sociedade e para o indivíduo. Com efeito, a experiência constitucional de vários Países tem apontado para o fato de que o Estado Democrático de Direito e as Liberdades Fundamentais dependem de um eficiente e bem organizado Controle de Constitucionalidade.

Mas o Controle de Constitucionalidade, na maioria dos Países que o consagram, opera-se por meio do exercício da jurisdição constitucional. Isto é, a defesa da Constituição – que é o fim do Controle de Constitucionalidade – é confiada ao Poder Judiciário ou aos Tribunais Constitucionais, que, por meio da jurisdição constitucional, declaram a nulidade de leis e atos incompatíveis com o parâmetro constitucional, contêm os excessos, abusos e desvios de poder, garantindo os direitos fundamentais e a primazia da Constituição.

Neste ensaio, não se falará propriamente do Controle de Constitucionalidade, embora se deva, em certa medida, reportar-se a seus principais modelos. Buscar-se-á abordar aqui, deveras, o acesso à jurisdição constitucional. Isto porque, a ativação do Controle de Constitucionalidade, não obstante seja fundamental para a eficiente proteção do texto constitucional e, em conseqüência, dos direitos fundamentais, é tema muito negligenciado pela doutrina pátria.

2. Os modelos difuso e concentrado de Controle de Constitucionalidade e o acesso à Jurisdição Constitucional

O acesso à jurisdição constitucional é uma espécie do gênero acesso à justiça, que é uma garantia fundamental consagrada na nossa Constituição de 1988 no art. 5º, inciso XXXV, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Por meio do acesso à jurisdição constitucional, habilita-se a sociedade e o cidadão a buscar, junto ao Poder Judiciário ou ao Tribunal Constitucional, a garantia da supremacia da Constituição e a proteção aos direitos fundamentais.

Conquanto de supina importância, o acesso à jurisdição constitucional não é um tema recorrente na doutrina. Na verdade, a doutrina brasileira queda-se diante do direito positivo, que, ora se omite a respeito do acesso à jurisdição constitucional, ora obstaculiza o acesso à jurisdição constitucional ao cidadão.

Ver-se-á, adiante, que o acesso à jurisdição constitucional depende e varia em consonância com o modelo de Controle de Constitucionalidade. No modelo difuso de Controle de Constitucionalidade, o acesso à jurisdição constitucional é amplo e franqueado ao cidadão; no modelo concentrado, todavia, o acesso à jurisdição constitucional é restrito a determinados órgãos, autoridades e entidades.

2.1. O modelo difuso de Controle de Constitucionalidade e o acesso à Jurisdição Constitucional

O controle difuso de constitucionalidade teve origem no caso Marbury v. Madison, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 1803, a partir da incontestável argumentação esgrimida pelo Justice John Marshall a respeito da supremacia da Constituição em face das leis em geral e da necessidade de garantir o texto constitucional por meio de um controle atribuído aos órgãos do Poder Judiciário (judicial review of legislation)[2].

À vista desse modelo, adotado no Brasil desde a Constituição de 1891, o controle de constitucionalidade é realizado por qualquer juiz ou tribunal, no curso de uma demanda judicial concreta, cuja inconstitucionalidade da lei ou do ato estatal emerge como uma questão incidental de qualquer caso ou litígio.

É exatamente por esse motivo, em face do qual, no modelo difuso, o controle de constitucionalidade ocorre sempre num caso concreto, entre partes litigantes, que controvertem sobre algum direito subjetivo, que o acesso à jurisdição constitucional é amplo e franqueado ao cidadão.

Assim, o acesso à jurisdição constitucional, nesse modelo de controle difuso-incidental de constitucionalidade, é aberto a todos aqueles que integram, de qualquer forma, a relação processual, assim como o órgão do Ministério Público, quando oficie no feito. A jurisdição constitucional, portanto, pode ser postulada: a) por quaisquer das partes (autor e réu) em qualquer ação ou recurso; b) pelos terceiros intervenientes (litisconsortes, assistentes, opoentes, entre outros); e c) pelo Ministério Público, quando oficie no feito ou na condição de autor (ex: ação civil pública).

2.2. O modelo concentrado de Controle de Constitucionalidade e o acesso à Jurisdição Constitucional

A jurisdição constitucional no controle concentrado de constitucionalidade logrou despontar-se no direito brasileiro, embora timidamente, a partir da Constituição de 1934, com a criação da representação interventiva confiada ao Procurador-Geral da República e sujeita exclusivamente à competência decisória do Supremo Tribunal Federal (art. 12, § 2º), nas hipóteses de ofensa aos princípios constitucionais consagrados no art. 7º, I, alíneas a a h da Constituição da época (ditos princípios constitucionais sensíveis).

Contudo, foi com a Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, que se instalou definitivamente no Brasil o controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos federais e estaduais em face da Constituição Federal, com a criação da representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais e estaduais (hoje denominada ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade), nos moldes do sistema europeu, de competência reservada exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal.

À vista desse modelo, instaura-se no Supremo Tribunal Federal uma fiscalização abstrata das leis ou atos normativos do poder público em confronto com a Constituição. Tal se dá em face do ajuizamento de uma ação direta, cujo pedido principal é a própria declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade.[3]

A Constituição vigente ampliou e aperfeiçoou o controle concentrado de constitucionalidade, com a criação de novas ações diretas[4] e a extensão da legitimidade para provocar a jurisdição concentrada do Supremo Tribunal Federal a outras autoridades, órgãos e entidades.

Todavia, apesar do avanço, não assegurou ao cidadão o acesso à jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, dada a natureza objetiva do processo de controle concentrado-principal de constitucionalidade, não é qualquer pessoa que pode ter acesso à jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal e promover as ações diretas de inconstitucionalidade e constitucionalidade[5]. A Constituição Federal de 1988 conferiu legitimidade ativa tão-somente a algumas autoridades, órgãos e entidades para propor tais ações perante o órgão judiciário competente.

É inegável, todavia, que houve uma grande inovação e um significativo avanço democrático patrocinado pela Constituição de 1988, ao quebrar o monopólio que detinha o Procurador-Geral da República para promover a antiga representação de inconstitucionalidade (atualmente denominada de ação direta de inconstitucionalidade) e abrir tal oportunidade a outras autoridades, órgãos e entidades, conferindo-lhes legitimidade para suscitarem a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal na defesa objetiva da integridade da Constituição.

Impende ressaltar, todavia, que os legitimados para a propositura das ações direta de inconstitucionalidade ou constitucionalidade não são considerados partes, pelo menos do ponto de vista material, uma vez que, nessas ações de nítido caráter objetivo, inexistem partes e quaisquer litígios referentes a situações subjetivas ou individuais. Pode-se dizer, apenas, que esses legitimados são partes meramente formais, por encontrarem-se incumbidos pela ordem jurídica da responsabilidade de argüirem judicialmente a inconstitucionalidade das leis ou atos normativos do poder público. Tampouco podem ser consideradas partes passivas os responsáveis pela elaboração do ato questionado, haja vista que as ações diretas não são propostas contra alguém ou determinado órgão, mas sim em face de uma lei ou ato normativo supostamente considerado inconstitucional[6].

Também não pode ser considerada parte passiva nas ações diretas, o Advogado-Geral da União, a despeito do que dispõe o § 3º do art. 103 da Constituição Federal, que determina sua “citação” prévia para defender obrigatoriamente o ato normativo impugnado na ação direta de inconstitucionalidade proposta perante o Supremo Tribunal Federal.

A posição do Advogado-Geral da União nas ações direta de inconstitucionalidade é, segundo esclarece o Supremo Tribunal Federal, de curador da presunção de constitucionalidade da lei, devendo, pois, obrigatoriamente, defender o ato impugnado. Essa posição do AGU (de defensor incondicional de todo e qualquer ato impugnado na ADI), não raro causa espécie, tendo em vista que, muitas vezes, terá ele de defender atos em desfavor da própria União Federal a qual lhe compete representar. Cite-se, como exemplo, um ato normativo emanado de Estado-membro, impugnado em sede de ação direta por haver usurpado competência da União. O AGU, mesmo assim, terá a obrigação de defendê-lo. Mas não é só. Segundo dispõe o art. 131 da Constituição, ao AGU também cabe prestar consultoria e assistência jurídica ao Poder Executivo. Suponha-se, agora, um ato normativo impugnado pelo Presidente da República em ação direta de inconstitucionalidade, fundado, inclusive, em parecer do AGU. O AGU também deverá defender esse ato.

Como conciliar, então, a atividade de representante judicial ou extrajudicial da União ou de consultoria e assistência jurídica do Poder Executivo com essa posição de defensor implacável de todos os atos impugnados por ação direta de inconstitu­cionalidade? Segundo o Supremo Tribunal Federal, não há, na hipótese, contradição alguma entre o exercício da função normal do Advogado-Geral da União, estabele­cida no art. 131 da Constituição, e o da defesa do ato impugnado em ADI, quando funciona como curador especial. Isso porque, na primeira situação, o AGU age na condição de representante e consultor jurídico do Poder Executivo da União e, na segunda, na condição de curador da presunção de constitucionalidade das leis ou atos normativos[7].

Sem embargo disso, e relativamente à obrigatoriedade da defesa da lei ou do ato impugnado, o Supremo Tribunal Federal passou a abrandar a norma insculpida no § 3º do art. 103 da Constituição Federal em situação relativamente à qual já exista jurisprudência pacífica da Suprema Corte entendendo a lei ou o ato inconstitucional. Com efeito, na ADIN 1.616, considerada oleading case no tema, o Supremo entendeu que “O munus a que se refere o imperativo constitucio­nal (CF, artigo 103, § 3º) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade”[8].

A atuação do AGU de curador especial do ato normativo atacado estende-se aos atos estaduais. Vale dizer, o AGU deve obrigatoriamente defender o ato impugnado, ainda que este seja estadual, com a ressalva acima.

Feitas essas considerações, importa agora examinar quem são os legitimados, ou requerentes, para a propositura das ações de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal. Isto é, quem tem acesso à jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal na defesa objetiva da integridade da Constituição.

Com efeito, em conformidade com a art. 103 da Constituição Federal de 1988, a ação direta de inconstitucionalidade (por ação ou por omissão) e a ação declaratória de constitucionalidade pode ser proposta pelo Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa de Assembléia Legislativa do Estado ou Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Governador de Estado ou do Distrito Federal, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical e entidade de classe de âmbito nacional.

Muito embora a Constituição não faça qualquer distinção entre os legitimados para a propositura dessas ações, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[9] tem restringido a legitimidade do Governador do Estado, da Mesa da Assembléia Legislativa, da confederação sindical e das entidades de classe de âmbito nacional, para lhes exigir a chamada pertinência temática, ou seja, a demonstração do interesse de agir, diante da necessidade da demonstração de uma relação lógica entre a questão versada na lei ou ato normativo impugnado e os interesses defendidos por esses legitimados[10]. De referência ao Governador do Estado e da Mesa da Assembléia Legislativa, exige-se, para o cumprimento do requisito da pertinência temática, que a lei ou o ato normativo impugnado diga respeito ou atinja, de algum modo, às respectivas coletividades políticas. Já em relação à confederação sindical e à entidade de classe de âmbito nacional, impõe-se a comprovação da adequação temática entre as finalidades estatutárias e o conteúdo da norma impugnada.

Por outro lado, para o Supremo Tribunal, como o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional têm interesse em preservar a Constituição em face mesmo de suas próprias atribuições institucionais, não é de se lhes exigir a pertinência temática.

Assim, em razão da orientação jurisprudencial do STF, há dois tipos de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade: a) os legitimados universais, que não precisam satisfazer o requisito da pertinência temática, são eles: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional, e b) os legitimados não universais ou especiais, que necessitam demonstrar o interesse de agir, ou seja, a adequação temática, são eles: Governador do Estado, Mesa da Assembléia Legislativa, confederação sindical e as entidades de classe de âmbito nacional.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal tem firmado uma jurisprudência restritiva, para deixar assentado que:

a)  na área sindical, só as Confederações, e constituídas na forma do art. 535 da CLC (ou seja, que têm na sua composição, pelo menos, três Federações), têm legitimidade para a propositura da ADI, excluídas as Federações sindicais, ainda que de âmbito nacional[11]. Ademais, é importante esclarecer que as Centrais sindicais não se confundem com as Confederações, não ostentando, em consequência, legitimidade para propor a instauração do controle abstrato de constitucionalidade[12].

b)  em relação aos partidos políticos, só os Diretórios Nacionais podem agir em nome da agremiação, não os Diretórios Regionais, mesmo que se trate de lei local[13]. Ademais, vinha o Supremo Tribunal Federal entendendo que a perda superveniente da representação parlamentar acarretava a perda da legitimidade ad causam do partido político, com a extinção da ação[14]. Contudo, o Supremo reviu a sua posição, para aceitar a legitimidade do partido, mesmo que, durante a tramitação da ação direta, venha perder a sua representação no Congresso Nacional. Destarte, segundo a Corte, “A perda superveniente de representação parlamen­tar não desqualifica o partido político como legitimado ativo para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.”[15].

c)  de referência às entidades de classe de âmbito nacional, o Supremo estabeleceu um critério objetivo, por aplicação analógica da Lei Orgânica dos partidos políticos, para só reconhecer aquelas entidades que possuam associados ou membros em pelo menos nove Estados da Federação, além de exigir que os associados ou membros estejam ligados entre si pelo exercício da mesma atividade econômica ou profissional. Para além disso, o Supremo havia firmado o seu entendimento no sentido de negar a legitimidade ativa ad causam às entidades de classe que se apresentassem como associação de associações, assim entendidas aquelas entidades que congregam outras entidades menores, ou que possuam composição heterogênea, reunindo, em seu quadro social, pessoas físicas e pessoas jurídicas. Todavia, o Supremo Tribunal Federal modificou o seu posicionamento para admitir a legitimidade dessas associações de duplo grau ou de composição heterogênea. Com efeito, a Suprema Corte, na Adin-AgR 3153, Rel. p/ acórdão o Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 12.08.2004, modificou completamente o seu entendimento, para reconhecer legitimidade ativa para propositura da Adin às entidades associati­vas de segundo grau, mais conhecidas como associações de associações[16].

Compartilhamos a opinião segundo a qual, à exceção do Procurador-Geral da República e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, todos os legitimados ativos, sejam universais ou especiais, devem se fazer representar por advogado (salvo se, na hipótese de legitimados pessoas físicas, eles próprios já o sejam), uma vez que somente detêm a legitimidade ad causam, não dispondo de capacidade postulatória[17]. Vale dizer, o art. 103, em seus incisos, somente confere a legitimidade ad causam às autoridades, órgãos e entidades nele referidas e não capacidade postulatória. Todavia, consoante vem decidindo o Supremo Tribunal Federal, a capacidade postulatória é inerente à legitimidade conferida pelo art. 103, limitada, contudo, às hipóteses dos incisos I a VII[18]. Isso quer significar que, segundo o Pretório Excelso, têm capacidade postulatória, não necessitando fazer-se representar por advogado, o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa do Estado ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Contrário sensu, carecem de capacidade postulatória, devendo fazer-se representar por advogado, o partido político com representação no Congresso Nacional, a confederação sindical e a entidade de classe de âmbito nacional. Quanto a estes, já decidiu o STF que é imprescindível, na ADIN, “a apresentação de procuração com outorga de poderes específicos para impugnar a norma”[19]. A Lei nº 9.868/99, nos parágrafos únicos dos arts. 3º e 14º, ao prescre­ver que a petição inicial, “quando subscrita por advogado”, deve vir acompa­nhada de procuração, talvez influenciada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, admite que se faça a distinção acima, entre os legitimados com capacidade postulatória e os sem capacidade postulatória.

Relativamente à argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), a Constituição não previu a legitimidade para a sua propositura. Deixou ao legislador tal incumbência, que restou, ao final, desempenhada pela previsão constante no art. 2º da Lei 9.882/99, segundo o qual os legitimados para o ajuizamento da argüição de descumprimento são os mesmos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade, que estão previstos no art. 103 da Constituição e foram acima mencionados.

Entretanto, cumpre sublinhar que o projeto do qual resultou a Lei da ADPF (Lei nº 9.882/99) havia assegurado, no inciso II do art. 2º, a legitimidade para a propositura da argüição a “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público”. Tal inciso, todavia, foi vetado pelo Presidente da República, frustrando toda uma expectativa da comunidade jurídica em geral, sob o argumento de que a “admissão de um acesso individual e irrestrito” de ações constitucionais no Supremo Tribunal Federal “é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais”, e que a “inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas”. Baseou-se o veto, ademais, na existência de um “amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Constituição Federal”, que “assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assistência à cidadania”.[20]

O veto presidencial, porém, longe de justificar-se, infirma o postulado democrático de abertura do processo constitucional ao cidadão e do acesso à justiça[21] de todos aqueles que pretendam buscar uma prestação jurisdicional na defesa de seus interesses constitucionalmente protegidos. Ademais, tal veto não se afigura tecnicamente escorreito, haja vista que a legitimidade popular limitava-se, à luz de uma interpretação lógica, ao estreito âmbito da argüição incidental[22], cujo ajuizamento depende necessariamente da existência de uma controvérsia constitucional relevante. Ora, é inegável que a idéia de se fixar uma modalidade de argüição suscitada como um incidente por ocasião de um processo concreto objetivava – na linha do Verfassungsbeschwerde do direito alemão e do recurso de amparo do direito espanhol – propiciar ao cidadão a defesa de seus direitos fundamentais afetados por ato do poder público.

E o veto só veio malograr esse desígnio, ao barrar qualquer tentativa de o próprio cidadão lesado buscar, ele próprio, repita-se, o amparo judicial na Corte suprema, desfigurando a essência e razão de ser da argüição incidental[23]. E no direito brasileiro, ademais da limitação à defesa dos preceitos fundamentais (e não de toda a Constituição) e da subsidiariedade (Lei 9.882/99, art. 4º, § 1º), essa possibilidade está limitada à prévia existência de uma controvérsia constitucional relevante sobre a aplicação de lei, ou ato do poder público, no âmbito de um processo em curso, o que significa dizer que, tanto o legislador constituinte como o legislador ordinário estabeleceram requisitos específicos de admissibilidade da ação incidental de argüição, circunstância que desmente as razões invocadas no veto.

O fato de remanescer ao cidadão a faculdade de poder representar ao Procurador-Geral da República – para solicitar a propositura da argüição, a teor do § 1º do art. 2º da Lei 9.882/99 e do próprio direito fundamental de petição (CF, art. 5º, XXXIV,a) – não soluciona o problema gerado pelo veto presidencial, uma vez que, caso o Procurador-Geral decida não promover a argüição, nada poderá fazer o cidadão, a não ser sofrer solitariamente o amargo desgosto de ver-se desassistido de qualquer medida para a proteção de seu direito consagrado num preceito fundamental da Constituição. Tal situação se agravou ainda mais em razão de outro veto presidencial aposto ao § 2º do art. 2º da citada lei, que previa, para o caso de o Procurador-Geral da República indeferir o pedido do interessado, caber representação ao Supremo Tribunal Federal, no prazo de cinco dias.

Desse modo, como dificilmente os co-legitimados para a argüição direta ou autônoma se valerão da argüição incidental – exatamente porque eles podem lançar mão, com mais facilidade, da modalidade autônoma, que não se submete ao requisito da prévia demonstração de controvérsia constitucional relevante, a que esta se encontra sujeita –, a modalidade incidental de argüição não passará de uma bela peça figurativa a estampar ao direito comparado a engenhosidade do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Assim, tudo está a indicar que a legitimidade ativa da argüição autônoma não se coaduna à natureza da argüição incidental, de tal modo que é possível defender-se a não extensão daquela legitimidade a esta modalidade de argüição. Mas, em face do veto presidencial, que fazer então?

Propõe-se uma interpretação conforme a Constituição – cujas normas não proíbem a legitimidade do cidadão, antes a estimulam –, do inciso I do art. 2º e de todo o art. 1º, da Lei nº 9.882/99, para circunscrever os legitimados arrolados no primeiro dos dispositivos à argüição direta ou autônoma prevista no caput do art. 1º, e admitir a legitimidade das partes envolvidas na controvérsia judicial da qual fala o inciso I, parágrafo único, do art. 1º, para a argüição incidental, que surgiu exatamente em decorrência desta controvérsia. Só assim, então, estaríamos compatibilizando as mencionadas disposições legais com a vontade constituinte de potencializar um instituto em defesa dos direitos fundamentais e abrir a tão enclausurada jurisdição constitucional concentrada ao acesso direto do cidadão, como ocorre em muitos países do além-mar, a exemplo da Espanha, Alemanha e Itália[24].

O Supremo Tribunal Federal, todavia, ainda não refletiu adequadamente sobre o tema, porquanto vem procedendo a uma análise fria e assistemática do art. 2º da Lei nº 9.882/99, para recusar a legitimidade das partes envolvidas na controvérsia, ao manejo da argüição incidental, fechando o acesso do cidadão diretamente interessado na resolução da questão à jurisdição constitucional concentrada da Corte, com o que tem negado o trânsito de todas as argüições incidentais até então aforadas. A título de exemplo, das diversas argüições ajuizadas, 21 (vinte e uma) foram sumariamente extintas por ilegitimidade ativa[25].

Remanesce, porém, a expectativa de mudança de entendimento da Corte que venha alçar a argüição incidental ao seu verdadeiro status de mecanismo de defesa, prioritariamente, dos direitos subjetivos, reconhecendo a legitimidade ativa à parte interessada lesada ou ameaçada por ato do poder público.

Referências

BASTOS, Celso Ribeiro. ‘Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e Legislação Regulamentadora. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (orgs.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, p. 80-81, 2001.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1997, 1351 p.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2ª ed. rev. atual. amp., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição. 2ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2007.
_________. Controle de Constitucionalidade. 8ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2015.
GARCIA, Maria. ‘Argüição de Descumprimento: Direito do Cidadão. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional (Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política), ano 8, n. 32, jul./set., 2000.
SARMENTO, Daniel. ‘Apontamentos sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental’. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (orgs.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, p. 85-108, 2001.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental: Lei n. 9.868/99 e Lei n. 9.882/99. São Paulo: Saraiva, 2001.


[1] Juiz Federal da Seção Judiciária da Bahia. Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e Mestre em Direito pela UFBA. Professor de Direito Constitucional nos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e nos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Professor e Coordenador do Núcleo de Direito do Estado da Faculdade Baiana de Direito. Conferencista e autor de diversas obras jurídicas. Ex-Promotor de Justiça do Estado da Bahia (1992-1995). Ex-Procurador da República (1995-1999).
[2] Para uma maior investigação a respeito do controle difuso de constitucionalidade, conferir CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade. 6ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2012.
[3] Para uma maior investigação a respeito do controle concentrado de constitucionalidade, também conferir CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade. 6ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2012.
[4] Além da ADI interventiva (representação interventiva) e da ADI (na qual foi convertida a antiga representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo), foram criadas a partir da Constituição de 1988 a ADI (por omissão), a ADC e a ADPF.
[5]           CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1997, p. 835: “Dado que se trata de um processo objectivo, a legitimidade para solicitar este controlo é geralmente reservada a um número restrito de entidades”.
[6] No mesmo sentido, CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2ª ed. rev. atual. amp., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 159.
[7] Vide ADI 97-7, RT 670:200.
[8] ADIN 1.616-PE, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 24/08/01.
[9] Vide, entre outras, ADinMca 1096-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 22.09.1995); ADinMca 1519-AL, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 13.12.1996.
[10] ADIN 1.507-MC-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06/06/97. “A legitimidade ativa da confederação sindical, entidade de classe de âmbito nacional, Mesas das Assembléias Legislativas e Governadores, para a ação direta de inconstitucionalidade, vincula-se ao objeto da ação, pelo que deve haver pertinência da norma impugnada com os objetivos do autor da ação. Precedentes do STF: ADI 305 (RTJ 153/428); ADI 1.151 (DJ de 19/05/95); ADI 1.096 (LEX-JSTF, 211/54); ADI 1.519, julg. em 06/11/96; ADI 1.464, DJ 13/12/96. Inocorrência, no caso, de pertinência das normas impugnadas com os objetivos da entidade de classe autora da ação direta).”
[11] ADIN 505-7, RT 677/240.
[12] Nesse sentido, conferir: “União Geral dos Trabalhadores (UGT). (...) Mantida a decisão de reconhecimento da inaptidão da agravante para instaurar controle abstrato de normas, visto não se amoldar à hipótese de legitimação prevista no art. 103, IX, ‘parte inicial’, da CF. Muito embora ocorrido o reconhecimento formal das centrais sindicais com a edição da Lei 11.648/2008, a norma não teve o condão de equipará-las às confederações, de modo a sobrelevá-las a um patamar hierárquico superior na estrutura sindical. Ao contrário, criou-se um modelo paralelo de representação, figurando as centrais sindicais como patrocinadoras dos interesses gerais dos trabalhadores, e permanecendo as confederações como mandatárias máximas de uma determinada categoria profissional ou econômica.” (ADI 4.224-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-8-2011, Plenário, DJE de 8-9-2011). Também conferir: “Central Única dos Trabalhadores (CUT). Falta de legitimação ativa. Sendo que a autora constituída por pessoas jurídicas de natureza vária, e que representam categorias profissionais diversas, não se enquadra ela na expressão – entidade de classe de âmbito nacional –, a que alude o art. 103 da Constituição, contrapondo-se às confederações sindicais, porquanto não é uma entidade que congregue os integrantes de uma determinada atividade ou categoria profissional ou econômica, e que, portanto, represente, em âmbito nacional, uma classe. Por outro lado, não é a autora – e nem ela própria se enquadra nesta qualificação – uma confederação sindical, tipo de associação sindical de grau superior devidamente previsto em lei (CLT arts. 533 e 535), o qual ocupa o cimo da hierarquia de nossa estrutura sindical e ao qual inequivocamente alude a primeira parte do inciso IX do art. 103 da Constituição.” (ADI 271, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 6-9-2001.) No mesmo sentido: ADI 1.442, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-11-2004, Plenário, DJ de 29-4-2005.
[13] Conferir AgRg em ADIN 779-DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 08.10.92, DJU de 11.03.94: “Somente Partidos Políticos ‘com representação no Congresso Nacional’ dispõem, ex vi do art. 103, VIII, da Carta Federal, de legitimidade ativa ad causam para o controle normativo abstrato. A representação partidária perante o Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas, constitui prerrogativa jurídico-processual do Diretório Nacional do Partido Político, que é - ressalvada deliberação em contrário dos estatutos partidários - o órgão de direção e de ação dessas entidades no plano nacional”.
[14] ADIN 1.063-DF, Rel. Min. Celso de Mello.
[15] ADIN 2.159-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24/08/04.
[16] Informativo STF nº 356: “O Tribunal concluiu julgamento de agravo regimental em ação direta de inconstitucionalidade no qual se discutia se entidades que congregam pessoas jurídicas consubstanciam entidades de classe de âmbito nacional, para os fins de legitimação para a propositura de ação direta. Tratava-se, na espécie, de agravo regimental interposto pela Federação Nacional das Associações dos Produtores de Cachaça de Alambique - FENACA contra decisão do Min. Celso de Mello, relator, que, por ausência de legitimidade ad causam da autora, julgara extinto o processo e declarara o prejuízo da apreciação do pedido de medida cautelar - v. Informativo 346. Por maioria, deu-se provimento ao recurso, por se entender que a autora possui legitimidade ad causam, haja vista ser entidade de classe que atua na defesa da mesma categoria social, apesar de se reunir em associações correspondentes a cada Estado. Vencidos os Ministros Celso de Mello, relator, e Carlos Britto que mantinham a decisão agravada, salientando a orientação da Corte segundo a qual não se qualificam como entidades de classe aquelas que, congregando exclusivamente pessoas jurídicas, apresentam-se como verdadeiras associações de associações, nem tampouco as pessoas jurídicas de direito privado, ainda que coletivamente representativas de categorias profissionais ou econômicas. (CF, art. 103: “Podem propor a ação de inconstitucionalidade:... IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.”). (ADI 3153 AgR/DF, rel. Min. Celso de Mello, rel. p/ acordão Min. Sepúlveda Pertence, 12.8.2004.)”.
[17] No mesmo sentido, Clèmerson Merlin Clève, op. cit., p. 173.
[18] ADIN 127-Al (MC), Rel. Min. Celso de Mello, j. em 20.11.89, DJU de 04.12.92, p. 23.057: “Ação direta de inconstitucionalidade. Questão de ordem. Governador de Estado. Capacidade postulatória reconhecida. Medida cautelar. Deferimento parcial. 1. O Governador do Estado e as demais autoridades e entidades referidas no art. 103, incisos I a VII, da Constituição Federal, alem de ativamente legitimados a instauração do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos, federais e estaduais, mediante ajuizamento da ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, possuem capacidade processual plena e dispõem, ex vi da própria norma constitucional, de capacidade postulatória. Podem, em conseqüência, enquanto ostentarem aquela condição, praticar, no processo de ação direta de inconstitucionalidade, quaisquer atos ordinariamente privativos de advogado. 2. A suspensão liminar da eficácia e execução de leis e atos normativos, inclusive de preceitos consubstanciados em textos constitucionais estaduais, traduz medida cautelar cuja concretização deriva do grave exercício de um poder jurídico que a Constituição da Republica deferiu ao Supremo Tribunal Federal. A excepcionalidade dessa providência cautelar impõe, por isso mesmo, a constatação, hic et nunc, da cumulativa satisfação de determinados requisitos: a plausibilidade jurídica da tese exposta e a situação configuradora do periculum in mora. Precedente: Adin n. 96-9 – ro (medida liminar, DJ de 10/11/89)”. No mesmo sentido: ADIN 120-Am (Pleno), Rel. Min. Moreira Alves, j. em 20.03.96, DJU de 26.04.96.
[19] ADIN (QO) 2.187-BA, Rel. Min. Octávio Galloti, j. em 24.05.2000.
[20] Eis na íntegra as razões do veto presidencial: “A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público”. A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais – modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida não há de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais poderes e as normas infraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Constituição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assistência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em sua função precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes de decisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, seja vetada a disposição em comento” (Mensa­gem nº 1.807, de 03 de dezembro de 1999).
[21] Sobre o tema, ver Mauro Cappelletti e Bryant Garth, Acesso à justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
[22] A argüição incidental cuida-se de uma modalidade da ADPF, que existe ao lado da argüição autônoma ou direta. Sobre a distinção entre essas modalidades da ADPF, conferir CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade. 6ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2012.
[23] Nesse sentido, são absolutamente procedentes os comentários de Daniel Sarmento, ‘Apontamentos sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental’. In: André Ramos Tavares; Walter Claudius Rothenburg (orgs.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001, p. 106: “Na verdade, o referido veto mudou a essência da ADPF que, se podia antes dele ser concebida como um instrumento primariamente vocacionado à proteção dos direitos fundamentais lesados pelo Poder Público, à semelhança do Verfassungsbeschwerde e do recurso de amparo, converteu-se num processo de caráter predominantemente objetivo, destinado à garantia da ordem constitucional lesada ou ameaçada por ato estatal comissivo ou omissivo”.
[24] No sentido do texto, colhe-se na doutrina, a título ilustrativo, a posição de TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental: Lei n. 9.868/99 e Lei n. 9.882/99. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 396-406; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 639-642; GARCIA, Maria. ‘Argüição de Descumprimento: Direito do Cidadão. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional (Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política), ano 8, n. 32, jul./set., 2000, p. 105 e, aparentemente, BASTOS, Celso Ribeiro. ‘Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e Legislação Regulamentadora. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (orgs.). Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análise à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, p. 80-81, 2001.
[25] Foram as seguintes: ADPF 11/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 30.01.2001, DJU de 06.02.2001, p. 294; ADPF 19/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 04.10.2001, DJU de 11.10.2001, p. 23; ADPF 20/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 15.10.2001, DJU de 22.10.2001, p. 10; ADPF 22/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 03.03.2004; ADPF 23/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 05.12.2001, DJU de 01.02.2002, p. 120; ADPF 27/RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, j. em 19.03.2002, DJU de 01.04.2002, p. 03;ADPF 29/MG, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 05.03.2002, DJU de 11.03.2002, p. 04; ADPF 30/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 15.03.2002, DJU de 26.03.2002, p. 39; ADPF 31/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 15.03.2002, DJU de 01.04.2002, p. 03; ADPF 34/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 20.11.2002, DJU de 28.11.2002, p. 15, ADPF 38/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 14.03.2003, DJU de 21.03.2003, p. 74 e as ADPF’s nºs. 42, 44, 48, 57, 58, 60, 61, 62, 69 e 75. O entendimento da Corte vem sendo reiterado, a partir da seguinte decisão proferida na ADPF Nº 11/SP, de lavra do em. Min. Carlos Velloso: “Vistos. Trata-se de argüição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido liminar, proposta por Fábio Monteiro de Barros Filho, com fundamento no art. 102, § 1º, da Constituição Federal e na Lei 9.882/99, na qual requer “a intervenção do STF, na qualidade de guardião da Constituição e do Estado de Direito, na forma da Lei 9.882, com a concessão de medida liminar” visando à “a) Suspensão do bloqueio de bens do requerente e suas empresas, para que possa desenvolver suas atividades, se necessário for para que o mesmo ofereça garantia real nos autos da ação civil pública proporcional a sua responsabilidade” (fls. 12/13), bem como “b) Suspender a sentença falimentar da CONSTRUTORA IKAL LTDA., até ao final da ação civil pública, em face da indisponibilidade de seus bens, créditos e valores depositados em conta corrente” (fl. 13). Autos conclusos nesta data. Decido. A argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ser proposta pelos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (Lei 9.882/99, art. 2º, I), mas qualquer interessado poderá solicitar ao Procurador-Geral da República a propositura da argüição (art. 2º, § 1º). Assim posta a questão, porque o autor não é titular da legitimatio ad causam ativa, nego seguimento ao pedido e determino o seu arquivamento. Publique-se. Brasília, 30 de janeiro de 2001. Ministro Carlos Velloso” (DJU de 06.02.2001, p. 294).

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Daniela Cunha.